Revisitando Derivadas

O sucesso de "Derivadas", na época, nos intrigou muito e nos perguntávamos se não haveria uma razão mais profunda que pudesse justificar este sucesso.

Em 1986, durante os preparativos da exposição no MAC/USP, fui convidado para um depoimento por Aracy A. Amaral, Prof. Adjunto da FAU-USP e então Diretora do MAC e por Ana Maria Belluzzo, também professora da FAU e Curadora da referida exposição. O objetivo era esclarecer aspectos da relação Arte-Computador e de minha colaboração com Cordeiro. Neste depoimento, na forma de entrevista, em que participaram Amaral, Belluzzo e Rejane L. Cintrão (Div. Difusão Cultural, MAC/USP) e que foi publicado (Arte e Computação-cadernos MAC-2 - São Paulo, julho de 1986), abordei a referida questão. Transcrevo abaixo (livremente), alguns trechos pertinentes da entrevista.

"... Existe um problema que discutimos na época e que ainda não resolvi,...., a questão é a seguinte: tanto a imagem em claro/escuro como a imagem por contornos são usadas como forma de linguagem......se compararmos uma imagem, por ex. um rosto, representado por seu contorno com a imagem em claro/escuro do mesmo rosto, elas têm formas muito diferentes. Então, o que existe em nossa vista e no nosso cérebro que faz com que se possa reconhecer uma pessoa tanto na realidade e numa imagem tipo fotográfica, em claro/escuro como numa linguagem em que só aparecem umas poucas linhas de contornos?......Do ponto de vista evolutivo, as vantagens para a sobrevivência provocaram o desenvolvimento da capacidade de reconhecer uma pessoa como um parente, um amigo, um filho ou um inimigo, uma pessoa que pode fazer bem ou mal, para decidir se deve se aproximar ou fugir.............reconhecer imagens da natureza tem um papel na alimentação, defesa e reprodução.............não sei quando, no processo evolutivo, se desenvolveu a capacidade do cérebro de atribuir significado a essas imagens de contornos que são muito diferentes das imagens que se encontram na natureza. Mas elas têm certamente significado. "Derivadas de uma Imagem" é uma transformação entre claro/escuro e contorno e, por alguma razão que eu não entendo, o contorno traz uma mensagem que tem uma relação muito grande com a mensagem do claro/escuro. Penso, assim, que o fato desses dois tipos de imagem estarem relacionados pela operação de "derivar" constitue um problema aberto cuja compreensão envolve estudos de evolução biológica, antropologia e percepção.

Voltando ao problema biológico-evolutivo da percepção, nota-se que a detecção do movimento é muito importante para a sobrevivência. O que é o movimento de uma figura em relação ao fundo? Se uma figura está parada em relação ao fundo, não se sabe bem qual é a separação entre as duas. É a nossa cabeça que, pelo significado, separa uma da outra. Isto é, o que é a figura e o que é o fundo, depende do observador. Se eu estou olhando para você, e considerar o movimento deste copo, você é o fundo para o movimento do copo, mas, se eu pensar no seu movimento, o sofá lá atrás, é o fundo para para o seu movimento. Na natureza observamos que lagartixas e passarinhos têm movimentos bruscos, como mecanismo de defesa. Um movimento mais lento e contínuo é mais facilmentre perceptível. No movimento brusco, se não está sendo sendo focalizado no momento em que ocorre, não é percebido. A nova imagem ligeiramente modificada não revela o movimento pois já esquecemos os detalhes da anterior..........para efeito de camuflagem, tanques, navios e aviões não são apenas pintados com as cores do fundo, mas procura-se simular uma textura semelhante à textura do fundo......o movimento da silhueta é facilmente perceptível."

Recentemente, um artigo publicado na conhecida revista "Scientific American" (maio 1991, pg. 40), de autoria de M. A. Mahowald e C. Mead, me fez reanalizar "Derivadas" à luz do progresso nos conhecimentos sobre os mecanismos da visão, e compreender melhor o seu significado, esclarecendo o problema acima citado.

O artigo se intitula "The Silicon Retina" e descreve um "chip" (circuito integrado complexo montado em um monocristal de silicio). Este chip está baseado na arquitetura neuronal do olho e visa simular o funcionamento da retina real. Esta retina artificial gera sinais que mimetizam os sinais gerados pela retina real.

Segundo os autores, uma das características dos sinais gerados por esta retina artificial consiste em que:

".... Grandes areas uniformes (da imagem observada) produzem sinais visuais fracos pois os sinais de cada fotoreceptor são cancelados pelo sinal médio espacial da rede de celulas horizontais. Em compensação, bordas produzem sinais intensos pois receptores dos dois lados da borda têm intensidades de luz que são significativamente diferentes do valor médio local. .....

.... Fotoreceptores geram sinais (provenientes) de um objeto em movimento enquanto os sinais gerados pelas celulas horizontais, com os quais são comparados, estão ainda emitindo os níveis anteriores de intensidade. Diferentemente de uma câmara (fotográfica), que produz uma simples imagem instantânea de um objeto, a retina se concentra em informar mudanças. "

Em outras palavras, as informações "importantes" que a retina envia ao cérebro se referem a mudanças espaciais ou temporais no nivel de iluminação (ou cor) da imagem, o que correspode a uma derivada espacial (d/dx) ou temporal (d/dt) da intensidade da imagem. Zonas da imagem cuja intensidade não varia no espaço ou no tempo não têm grande interesse e não enviam sinais para o cérebro.

O estudo da retina artificial não só traz perspectivas para a construção de "Robôs" com capacidade de visão, mas também permite entender melhor o funcionamento do processo da visão natural.

A relação entre a tranformação de "derivação da imagem" que é realizada em "Derivadas" (que detecta as bordas da imagem) e o funcionamento da retina natural são evidentes.

Assim, de acordo com o exposto, a transformação de uma imagem em claro/escuro numa imagem formada por contornos, como é feito em "Derivadas", nada mais é do que o processo que nossa retina executa naturalmente numa imagem, antes de envia-la ao cérebro. Se a imagem já é em contornos, o cérebro estará recebendo a segunda derivada da imagem, que ainda é inteligível (como se pode notar em "Derivadas").

Tendo em vista estes desenvolvimentos recentes na compreensão dos processos da visão, se pode perceber o quanto "Derivadas" está relacionado com os mecanismos mais fundamentais deste processo.Penso que esta análise ajuda a explicar porque "Derivadas", talvez penetrando diretamente no inconciente do observador, tenha atraido tanta atenção.


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